Todas as noites, logo depois da janta, a gente sentava no varandão da casa da fazenda e ficava ouvindo os barulhos dos motores de popa, muitas vezes se adentrando pelas madrugadas. Era um pó-pó-pó compassado, ocupava a nossa intenção e até nos fazia companhia, ajudando-nos a vencer a escuridão das horas solitárias, o silêncio angustiado das infindáveis noites de insônia no Pantanal.
Passei a infância ouvindo falar do velho Taquari: falavam que estava sempre enchendo fora de horas, dando repiquetes inesperados. Faltavam, também, que dele chegavam os ladrões de gado, os caçadores de jacarés, homens que andavam fora-da-lei, fugindo da polícia, que era bom de peixe, banhava terras férteis para a criação de gado, carreando riqueza aos moradores das colônias ribeirinhas, pequenos proprietários da região, gente que o estimava como amigo íntimo, espécie de presente da natureza, pois dele todos dependiam para o sustento das famílias.
O Taquari povoou a minha imaginação de guri. Cresci e ele continuou a encher de curiosidade o espaço do meu pensamento, ainda mais quando entrei em contato com a sua história, com a importância de ter sido uma via de integração regional e com as lendas que desciam no rebojo das suas curvas misteriosas.
Hoje, depois de tantos anos, esse rio ainda faz parte do repertório das minhas preocupações. Só que agora não é mais aquele Velho taquari de navegação não comprometia, de embarcações cruzando margens bem delineadas de um rio que cumpria o papel histórico e continuava a prestar serviços as comunidades pantaneiras.
O Taquari de hoje carrega a desgraça de ser o protagonista da maior catástrofe social, econômica e ambiental que já ocorreu no Pantanal. Deixou de ser construtivo para ser destrutivo quando inunda 11 mil km² de área antes produtiva. Pior: tornou-se ameaçador da fauna e da flora, devastador de peixes, causador de danos à pecuária e ao turismo que o utilizavam como uma via fluvial de acesso a recantos antes cheios de encantos e “estórias” fantásticas.
Que triste cenário é esse que hoje vemos estampado nas páginas coloridas das revistas, dos relatórios e dos anúncios de seminários e encontros infindáveis, que se repetem como um rosário de palavras e promessas que não redundam em nada.
Até sua cor mudou. Virou barrenta, suja, de água entupida de areia. Está morrendo de tanta coisa imprestável que os homens de estudo confirmam ser “deposição de sedimentos nos lóbulos ativos de leque aluvial, ou/ainda, sofre o efeito anastomose…”
Historicamente foi ousado. Banhou muito corpo de índia nua, ajudou o paulista-bandeirante a penetrar pelos sertões embrutecidos em busca de ouro cuiabano. No século XVIII, por ele navegou um lusitano fidalgo, o capitão-general Rolim de Moura Tavares, quando, a mando da Coroa Portuguesa, veio à Colônia fundar a primeira Capital de Mato Grosso, Vila Bela Santíssima Trindade.
Na sua confluência com o Rio Paraguai, ainda no século XVIII, existia um posto entrincheirado denominado “Pouso Alegre”, local em que as canoas de guerra vinham socorrer as monções contra os ataques dos índios Paiaguá.
Se o rio ajudou e protegeu tanta gente que não era dele, tantos portugueses, tantos bandeirantes, que dirá seu povo? O pantaneiro, aquele que o amou e até hoje traz guardado dentro dos olhos a saudade do risco das suas antigas margens?
Não é difícil imaginar o grau de intimidade que havia entre o homem ribeirinho e o rio. E não faz mal repetir a tamanha dor que esse homem hoje carrega na alma ao ver sua casa, seu campo, a roça onde praticava a agricultura familiar, tudo afogado sob a rebeldia das águas dos “arrombados”, que forçaram a migração das famílias inteiras para a periferia de Corumbá e Ladário, superlotando os acampamentos dos sem-terra e dos sem-teto, num total infortúnio de quem tudo perdeu, até a própria dignidade.
Por Augusto Proença
Augusto César Proença contista e historiador brasileiro, e pesquisador da cultura pantaneira