Um debate para agora e uma ação para ontem

Por Angelo Lima
(originalmente publicado na Revista Política Democrática sobre sustentabilidade de número 59 da Fundação Astrojildo Pereira – FAP)

O Brasil poderia se considerar um país privilegiado em relação a quantidade de água existente no país. Cerca de 13,7% da água no mundo está no Brasil, porém, nosso desafio começa quando se analisa a distribuição da água.

Portanto, onde começam os desafios?

Os desafios podem começar pela distribuição diferenciada da água nas regiões do país.

A região Norte do país tem 70% da água e cerca de 6% da população; a região Centro Oeste tem 16% da água do Brasil e 8% da população, a região Nordeste tem 3% de água e 30% da população, a região Sudeste tem 6% da água e praticamente 50% da população e por último a região Sul tem 7% da água e 14,3% da população.

O Brasil ainda tem 35 milhões de pessoas sem acesso a água, no entanto, a região Norte onde tem maior quantidade de água, é a que tem a população com a menor taxa, 57,5% da população abastecida com água tratada. No Nordeste, o abastecimento é de 73,9% da população. Já o Centro-Oeste conta com 89,7% da população atendida com água tratada. A região Sudeste possui a melhor porcentagem, 91,1%, seguida pelo Sul, com o índice de 90,5%.

Em relação ao saneamento, 100 milhões de brasileiros (as) não têm serviço de coleta de esgotos no país. Desses, 5 milhões e meio estão nas 100 maiores cidades brasileiras, o equivalente à população da Noruega.

Um Estudo do Instituto Trata Brasil mostra que tivemos mais de 273 mil internações por doenças de veiculação hídrica em 2019, por conta da falta de saneamento básico, o que fez o Brasil investir recursos da ordem de R$ 108 milhões (cento e oito milhões de reais) com hospitalizações.

O fato de ainda termos população sem acesso à água limpa e segura e saneamento, que são direitos humanos básicos, já mostra outro desafio que pode ser caracterizado como um problema de governança e gestão.

O Brasil ainda apresenta dados negativos em relação ao direito humano do acesso a água limpa e segura e ao saneamento:

► Estudos recentes comprovam que moradores de locais sem saneamento básico ganham salários menores do que a população com acesso a água, coleta e tratamento de esgoto, por isso, também estão mais vulneráveis a doenças comuns em áreas em que essa infraestrutura inexiste ou é precária – e o efeito disso é uma elevação nas despesas com saúde pública, que na realidade são despesas com doenças, não de fato com saúde.

► Em 2017, em todo o Brasil, 872 cidades tiveram reconhecimento federal de situação de emergência causada por um longo período de estiagem. A região mais afetada foi a do Nordeste e o estado da Paraíba, que concentrou o maior número de municípios, com 198 que comunicaram o problema à Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec).

O olhar sistêmico sobre a gestão ambiental e das águas; será que temos?

O segundo o relatório do MapBiomas lançado no mês de agosto de 2021 sobre Água parece demonstrar que temos um grande desafio que é trabalhar um olhar sistêmico sobre a gestão das águas no Brasil.

 O Brasil está perdendo superfície coberta com água desde os anos 90. A perda foi de 15,7%, caindo de quase 20 milhões de hectares para 16,6 milhões de hectares em 2020.

9 das 12 regiões hidrográficas existentes no Brasil, perderam superfície de água entre 1990 e 2020, sendo que boa parte destas regiões hidrográficas são exatamente onde estão o maior contingente populacional do país e é importante dizer que mesmo a Região Hidrográfica Amazônica diminuiu cerca de 12% de sua massa de água.

Outro dado é que 54 das 76 sub-bacias hidrográficas perderam superfície de água nas últimas 3 décadas e 23 Estados tiveram redução de superfície de água entre 1990 e 2020. Nos estados do Mato Grosso e Roraima a redução alcançou 50% e o Mato Grosso do Sul foi o Estado com a maior perda absoluta (e relativa) de superfície de água em uma série histórica de 36 anos, passando de 1.371.069 de hectares de superfície de água em 1985, para 589.378 hectares em 2020.

Como garantiremos segurança hídrica, perdendo superfície de água?

Mas porque estamos perdendo a superfície de água no Brasil?

Um dos aspectos que explicam a perda de superfície de água, é o manejo e uso do solo inadequado na área urbana e rural, o modelo atual de produção agrícola, a forma e a concentração de ocupação na área urbana e o desmatamento.

Não se pode colocar culpa na ausência de chuva pela perda de superfície de água no Brasil, o desmatamento na Amazônia e nos outros biomas tem efeitos claros sobre esta situação. 

Em relação ao desmatamento, os mapas e dados atualizados do MapBiomas mostram que o Brasil perdeu 87,2 milhões de hectares de áreas de vegetação nativa entre 1985 e 2019. Isso equivale a 10,25% do território nacional. 

Os desmatamentos aumentaram a partir de 2018 em todos os biomas: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e no Pampa.

O mapa Biomas lançou um recente relatório demonstrando que perdemos 24 árvores por dia em 2020.

É bom lembrar que a Floresta Amazônica é responsável pelas chuvas que chegam na região Centro Oeste, Sudeste e Sul, por meio dos rios voadores.

Análises da equipe do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que a quantidade anual de chuva caiu à metade ao longo dos últimos 20 anos em regiões de Rondônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará, onde a agropecuária ocupou até 60% de áreas antes florestadas, com prejuízo anual estimado em R$ 5,7 bilhões. 

Sobre a forma de ocupação na área urbana, é bom lembrar que a forma é padrão no Brasil, cidades como Belo Horizonte e São Paulo, outras poderiam ser citadas, tiveram seus rios urbanos canalizados de forma aberta e fechada em cerca de 80% e praticamente 90% da área urbana destas cidades estão asfaltadas. Com isso, a água da chuva nos centros urbanos não infiltra, causando enchentes com frequência. 

Qual a consequência dos desmatamentos na Amazônia e nos outros biomas?

O aumento do desmatamento em todos os biomas do Brasil, em especial na Amazônia, provoca a diminuição das chuvas e ao mesmo tempo, mesmo quando chove, por conta da ausência da cobertura florestal ou um manejo adequado do uso solo, a água da chuva não infiltra no solo.

A não infiltração da água no solo, dificulta a manutenção da regularidade da quantidade de água durante o período seco, ou seja, a infiltração e a percolação da água no solo e subsolo, dois componentes importantes do ciclo natural, não estão acontecendo devido a interferência equivocada da ação do homem no manejo do território.

E o que significa perder superfície de água?

Significa que estamos perdendo a quantidade de água armazenada nos rios que são capazes de garantir os usos múltiplos das águas, em especial do abastecimento humano, lembrando que a lei das águas diz que em caso de escassez é preciso garantir o abastecimento humano e matar a sede dos animais.

Estamos colocando em risco o abastecimento de água para a população, os negócios e o desenvolvimento e não estamos conseguindo implementar o olhar sistêmico e integrado de gestão ambiental e das águas, integrado inclusive com a discussão do modelo desenvolvimento econômico e social.

Outros aspectos importantes no desafio para a gestão das águas são econômicos, sociais, da emergência climática e da governança para inclusive enfrentar os desafios anteriores.

Se já não bastassem os desafios para a economia antes da pandemia, o custo humano e econômico imediato de COVID-19 é alto. Essa situação ameaça reduzir anos de avanços na redução da pobreza e da desigualdade, dificultando ainda mais a coesão social e a cooperação global.

Além disso, na questão econômica, podemos recorrer aos relatórios do Fórum Econômico Mundial, que sempre tratam dos riscos globais e a cada ano apresenta um relatório sobre os riscos mais significativos e de maior impacto a longo prazo em todo o mundo, baseando-se nas perspectivas de especialistas e tomadores de decisão globais.

No relatório de 2015, aproximadamente, 900 especialistas da área econômica participaram da pesquisa de percepção de Riscos Globais. Eles classificaram a crise de abastecimento de água como o maior risco de maior impacto que se anuncia no mundo atual. Além deste, outros grandes riscos relacionados a seus conflitos e conflitos interestatais, em termos de impacto, são: propagação rápida de doenças infecciosas, armas de destruição massiva e a falta de adaptação às mudanças climáticas.

Já o Relatório de 2021 aponta que os riscos de maior probabilidade para os próximos dez anos incluem: condições climáticas extremas, falhas em respostas climáticas e danos ambientais causados pelo homem, além de concentração de capacidades digitais, desigualdade digital e falhas em segurança cibernética. Os riscos de maior impacto da próxima década incluem doenças infecciosas (primeiro lugar), falhas nas respostas climáticas e outros riscos ambientais, além de armas de destruição em massa, crises de subsistência, crises com dívidas e quebra de infraestrutura de TI.

A figura 1 apresenta um resumo dos riscos apresentados para os próximos 2 anos.

Fonte: Relatório de Riscos Globais 2021 16º Edição

Outro dado importante do relatório apresenta de que forma os entrevistados percebem o impacto e a probabilidade dos riscos globais.

Os dois que apareceram com maior risco foram: Doenças infecciosas e Deficiência nas respostas climáticas, lembrando que os dois tem relação com o modelo de desenvolvimento atual, com o desmatamento (quando desmatamos ocorre o desiquilíbrio do ambiente natural e propicia o aparecimento de doenças), a forma equivocada de manejo e uso do solo na área urbana e rural e ainda que 80% dos impactos das mudanças climáticas são sobre as águas.

Em relação ao social, todos os quesitos acima, desde o fato da não garantia da universalização da água para o abastecimento humano, à ausência de saneamento ambiental, a desigualdade na distribuição de renda, tem impacto sobre o social e afetam principalmente as populações mais vulneráveis.

A desigualdade social tem tanto relação com o modelo de desenvolvimento atual, quanto com os impactos sobre o ambiente, sendo que neste caso são os mais ricos que causam maior impacto sobre o ambiente.

A riqueza da humanidade adulta (cerca de 4,7 bilhões de pessoas) é de 240,8 trilhões de dólares (2013). Mais de dois terços (68,7%) dos indivíduos adultos situados na base da pirâmide da riqueza, possuem 3% (7,3 trilhões de dólares) da riqueza global, com ativos de no máximo 10 mil dólares.

No topo da pirâmide, apenas 0,7% de adultos, possui 41% da riqueza mundial (98,7% trilhões de dólares). Somados os dois estratos superiores da pirâmide – 393 milhões de indivíduos ou 8,4% da população adulta – detêm 83,3% da riqueza mundial.

Para satisfazer a avidez de 393 milhões de indivíduos – os 8,4% da população mundial adulta detentora de 83,3% da riqueza mundial –, move-se a economia do planeta, máquina produtora de crises ambientais, a começar pelas mudanças climáticas: “os 500 milhões de pessoas mais ricas do mundo produzem metade das emissões de CO2, enquanto os 3 bilhões mais pobres emitem apenas 7%”.

O Brasil é diferente do mundo em relação a desigualdade social? Infelizmente não é o que tem se apresentado é que voltamos a ter a presença da fome no país.

Com relação às mudanças climáticas, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apresenta dados catastróficos.

Segundo Antonio Guterres (Secretário Geral da ONU), “o relatório deve soar como uma sentença de morte para os combustíveis fósseis, antes que destruam o planeta”. O chefe da ONU pede ação imediata para cortes profundos das emissões dos poluentes, já que sem isso, não será possível limitar o aquecimento da temperatura global a 1.5 °C.

O novo relatório sobre mudanças climáticas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) mostra que estamos diante de mudanças sem precedentes no clima – algumas delas irreversíveis, sendo eles: É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre; As concentrações de CO2 (gás carbônico), CH4 (metano) e N2O (óxido nitroso), os três principais gases de efeito estufa em mistura na atmosfera1, são as maiores em 800 mil; É virtualmente certo que a frequência e a intensidade de extremos de calor e a intensidade e duração de ondas de calor aumentaram na maior parte do globo desde 1950 e Em todos os cenários a marca de 1,5oC, limite mais ambicioso do Acordo de Paris, deve ser ultrapassada entre 2021 e 2040.

No caso do Brasil, o desmatamento na Amazônia foi principal responsável pela elevação de 9,5% nos gases de efeito estufa verificada em 2020 e além disso cenários de diminuiçãi da precipitação que estavam previstos para acontecer a partir do 2071, conforme a imagem abaixo, já estão acontecendo agora em 2021.

Figura 2: Cenários de precipitação. Fonte: Cenários do IPPC para o Brasil.

No Cenário otimista, a diminuição de chuvas é de 15% e no cenário pessimista, a diminuição pode diminuir de 30 a 40%.

As imagens abaixo mostram que já estamos vivendo a diminuição de chuvas este ano, que também acontece pelo desmatamento da Amazônia, mas não somente.

Fonte: MONITORAMENTO DE SECAS E IMPACTOS NO BRASIL – SETEMBRO/2021 – Cemaden

Vale dizer que mesmo antes do que poderíamos dizer que as causas da diminuição da precipitação ou de eventos extremos eram as mudanças climáticas, os mapas a seguir mostram o Brasil todo pintado de secas e inundações, informações que vieram diretamente dos municípios para o IBGE;

Figura 4: Ocorrência de secas e alagamentos nos municípios brasileiros. Fonte:  Elaborado a partir de IBGE (2018)

Agora nosso olhar se volta para a Governança. O Brasil tem governança para enfrentar estes desafios? Tem governança para construir políticas públicas de forma integrada?

Ao longo dos últimos anos foram construídos importantes arcabouços legais e institucionais para a gestão do meio ambiente e das águas que neste momento estão sendo desmantelados e já estamos pagando por isso.

Portanto, se antes disso está acontecendo, a governança que existe no Brasil já era insuficiente, reflitamos sobre o agora. Só para falar dos municípios, especialmente, os pequenos e médios, que estruturas elas conseguem ter para enfrentar os períodos de seca e cheia como os demonstrados pelo mapa do IBGE?

Por vezes, se repete um falso debate sobre se o Estado deve ser mínimo ou máximo, o fato é que o Estado e neste caso estamos falando dos poderes públicos federal, estaduais e municipais, precisam ter estrutura (governança) para enfrentar estes desafios e a discussão de Estado mínimo ou máximo, desvia da necessidade de discutirmos de fato qual é o tamanho do Estado que precisamos ter.

Além disso, no que diz respeito à governança dos recursos hídricos, aprovamos a Lei 9433/97 que apresenta enormes avanços para a construção de um diálogo entre segmentos diferentes, porém, quase sempre os governos: federal e estaduais desmontam a base para que as políticas das águas avancem. Fora, que ainda não estão dadas todas as condições para que os Comitês de Bacias, base da gestão das águas, tomem de fato decisão sobre as bacias pelo fato da não implementação na totalidade dos Estados do Brasil, dos instrumentos da gestão de recursos hídricos, como por exemplo, a cobrança pelo uso da água, somente 6 Estados tem cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Além disso, no quesito governança, um elemento importante que deve avançar e não regredir, é a participação social. Estudiosos como Fiorino (1990), Laird (1993), Renn et al. (1995), ou Beierle e Cayford (2002), identificaram vários benefícios da participação, que vão desde o aumento da legitimidade de decisões, ao desenvolvimento da democracia participativa, além da democracia representativa.

Alguns destes e outros benefícios ocorrem como um produto da aprendizagem. Durante a interação, os participantes aprendem sobre os assuntos discutidos e os pontos de vista de outras pessoas. Eles também são capazes de descobrir novos pontos em comum e aprimorar suas habilidades de interação social.

Como resultado dessa aprendizagem, os seguintes benefícios são atribuídos à participação: a) Decisões de melhor qualidade: quando o conhecimento de diferentes atores, incluindo especialistas, é reunido durante o discurso, isso pode, potencialmente, levar a decisões com mais informações; b) Melhor aceitação das decisões: envolvendo as pessoas que serão afetadas pela decisão, um acordo mais amplo pode ser negociado, o que, potencialmente, aumenta o apoio à implementação e c) Desenvolvimento de capital social: através da interação intensa em um processo de participação, os participantes podem construir novas redes e trabalhar para resolver conflitos, tendo, assim, a oportunidade de aumentar o capital social, que por sua vez, pode permitir-lhes mais resolver facilmente problemas e novos conflitos no futuro.

Pedro Jacobi (2007) ainda cita que “o fortalecimento dos espaços deliberativos tem sido peça fundamental para a consolidação de uma gestão democrática, integrada e compartilhada. Atualmente, o maior desafio é garantir que esses espaços sejam, efetivamente, públicos, tanto no seu formato quanto nos resultados”.

Portanto, é fundamental investir na governança, na gestão integrada, sistêmica, participativa e descentralizada, para cada vez mais avançar na democracia e no aprendizado da participação social, porém, isso nos ajuda para tentarmos diminuir os efeitos do nosso modelo de desenvolvimento, mas isto não resolve completamente nossos desafios.

As crises ambientais, hídrica e econômica que já passamos e estamos passando, demonstram a necessidade urgente da construção de um novo modelo de desenvolvimento, onde a questão ambiental e social sejam o carro chefe do desenvolvimento e dizendo que de forma a economia deve funcionar.

O desenvolvimento para ser pleno tem que ser baseado na integração do social com o ambiental. É fundamental incorporar a questão ambiental e social na discussão sobre desenvolvimento, afinal, são os mais vulneráveis economicamente que mais sofrem com ausência de água, saneamento e com a desigualdade econômica.

Não me parece que basta apenas incorporar a questão ambiental na Economia, não basta a Economia Verde, é preciso mudar o paradigma, onde o ambiental e o social ditem o ritmo do que é desenvolvimento, inclusive o econômico.

Angelo José Rodrigues Lima – Biólogo (UFRRJ), Mestre em Planejamento Ambiental (COPPE/UFRJ), Especialização em Recursos Hídricos (UFPB), Doutor em Geografia (UNICAMP), militante sócio ambientalista e ocupa atualmente o cargo de Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas (www.observatoriodasaguas.org).

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