Por Jamil Chade – UOL

O agronegócio brasileiro terá de sair ao socorro das florestas e promover uma transformação no uso da terra se quiser continuar a ser competitivo e com altas taxas de produtividade. Num informe que será debatido na próxima semana entre governos de todo o mundo, a constatação é de que as mudanças climáticas terão um profundo impacto no sistema de produção de alimentos no mundo, com repercussões negativas para a soja sul-americana e outros cultivos, além de potencial inflação e, em alguns locais do planeta, o incremento da fome.

O informe foi produzido pelos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) e que vem servindo de bússola para o debate sobre o futuro do planeta. A partir do dia 14, governos irão se reunir para negociar o levantamento e publicar a versão final da avaliação. Prêmio Nobel da Paz em 2007, o IPCC produziu um rascunho de suas novas conclusões, distribuindo a governos. Nos documentos, sigilosos, autoridades são instruídas a não divulgar ou compartilhar as informações. Obtido pelo UOL com exclusividade, o primeiro rascunho do documento revela a dimensão do desafio que representará a questão climática para a produção de alimentos. Ele ainda precisará passar por um processo de aprovação e eventuais mudanças, depois de meses de elaboração e compilação de toda a ciência Obtido pelo UOL, novo informe do IPCC alerta para impacto das mudanças climáticas sobre soja e produtividade agrícola na América do Sul Documento será debatido a partir da próxima semana por governos Inflação, fome e queda de produtividade são previstas diante de mudanças climáticas.

Mas o texto não deixa dúvidas sobre o que espera a humanidade nas próximas décadas, caso não consiga reverter o aquecimento global. Carro-chefe das exportações brasileiras e dono de um intenso lobby nos bastidores do poder, o agronegócio é colocado em uma encruzilhada. Com um alto grau de certeza, os cientistas apontam que as mudanças climáticas terão um impacto negativo sobre a produção de soja em toda a América do Sul. Também fica estabelecido que a produtividade total da agricultura na região será afetada de forma negativa.

O informe ainda é divulgado num momento em que o governo de Jair Bolsonaro é acusado de desmonte da política ambiental e com taxas elevadas de desmatamento. Entre as conclusões, o novo informe alerta que, diante de mudanças nas temperaturas, a área cultivada na América do Sul irá encolher. “As mudanças climáticas afetam os sistemas alimentares com consequências negativas para a  subsistência, a segurança alimentar e nutricional de milhões de pessoas. Nos últimos 30 anos, as mudanças climáticas reduziram o rendimento das principais culturas em 4-10% globalmente, especialmente em latitudes médias e baixas”, diz o informe do IPCC. De acordo com os cientistas, o impacto não é um debate sobre o futuro e a realidade hoje é que já está “mudando as regiões agrícolas, contraindo seus limites e contribuindo para perdas de colheitas e gado em larga escala e qualidade reduzida”.

Em algumas regiões do mundo, as temperaturas já estão nos limites superiores de tolerância de cultivo. “O estresse térmico extremo durante as principais fases de desenvolvimento, especialmente de culturas perenes, reduz a produção de alimentos”, diz. “Para estas espécies, a falta de previsibilidade da data ou local de plantio muitas vezes resulta na redução da qualidade do produto colhido, com consequências para a subsistência. O aumento da variabilidade climática e os extremos afetam negativamente os sistemas agrícolas baseados na pecuária, incluindo a dinâmica do rebanho e as taxas de recuperação, afetando diretamente a resiliência das famílias”, constata. Adaptação será necessária Na avaliação do Painel, a América Central e do Sul terão de expandir ações de adaptação às mudanças climáticas nos setores agrícola e incluir manejo do solo e da água, diversificação de culturas, agricultura inteligente, sistemas de alerta precoce, melhor manejo de pastagens e pecuária.

Os cientistas, de uma forma inédita, ainda apontam para a necessidade de se recorrer ao “conhecimento indígena” para reduzir os impactos das mudanças  climáticas e a vulnerabilidade das comunidades dependentes de recursos. “Os principais impactos projetados da mudança climática no setor agrícola e alimentar incluem um declínio em pesca, aquicultura e produção agrícola, os maiores rendimentos agrícolas serão impactados, especialmente na África Subsaariana, América Central e do Sul, Sul e Sudeste Asiático, uma redução na produção animal na Mongólia, e mudanças nos sistemas de cultivo e nas áreas de cultivo em quase todas as regiões, com resultados negativos implicações para a segurança alimentar”, alerta. Terras cultivadas encolherão O IPCC destaca que um aumento de temperatura de 2,3 graus Celsius causaria um declínio de até 415 mil km² de terras cultivadas na Mesoamérica e até 405 mil km² na América do Sul. “Na Europa, as perdas de rendimento do milho, especialmente na Europa mediterrânea, aumentarão com os níveis de aquecimento chegando a 50% em resposta ao aquecimento de 3-4°C, enquanto os rendimentos de outras culturas podem aumentar no norte da Europa com um aquecimento mais baixo”, destaca. O rendimento de cereais e soja em baixa latitudes é projetado para diminuir em aproximadamente 5% com cada grau de aquecimento. A produção média de trigo australiano pode diminuir entre 7-9% até 2050, com a redução de pastagem de até 23% até 2070. O aumento da temperatura afetará todas as espécies animais que prejudicam a produção em muitas regiões tropicais e temperadas. 

A previsão também aponta que a produtividade global da pesca marinha e terrestre e da aquicultura diminuirá, com impactos nos alimentos. O potencial de captura da pesca marinha está projetado para diminuir em atl 70% para regiões tropicais, resultando em alto risco de desnutrição na África. As mudanças climáticas aumentarão a proliferação de algas, doenças e danos à infraestrutura, principalmente em países com dependência da aquicultura. Mais de 150 milhões de pessoas no mundo dependem desse setor. O uso da água para ração animal, biocombustíveis e florestamento pode ainda reduzir a segurança alimentar e a subsistência de populações vulneráveis, como os indígenas. “Milhões a mais estarão em risco de insegurança alimentar”, diz. Milhões de pessoas já afetadas De acordo com os cientistas, a queda de produção na agricultura em certas regiões já atingiu 166 milhões de pessoas, principalmente na África e na América Central, causando dependência da assistência humanitária devido a emergências alimentares relacionadas ao clima entre 2015-2019. O problema, portanto, não é sobre um fenômeno que ameaça populações num futuro distante. Na África Subsaariana, a produção de milho e trigo diminuiu 5,8% e 2,3%, respectivamente. “Os extremos relacionados ao clima, tais como inundações, ondas de calor, secas e episódios de altas concentrações de ozônio ao nível do solo aumentaram nos últimos 50 anos em terra e no mar, causando graves perdas localizadas em produções agrícolas em muitas regiões”, diz.

A variabilidade climática e os extremos afetam negativamente a produção e qualidade espacial e temporal de alimentos, exacerbam a escassez sazonal de alimentos, aumentam os preços dos alimentos e ameaçam a segurança  alimentar, a nutrição e a subsistência de milhões de pessoas, particularmente na África Subsaariana, Ásia-Pacífico e América Latina. Pesca e água O impacto não se limita à produção em terra. “As mudanças climáticas na pesca comercial e de subsistência em água doce e marinha e na aquicultura estão ameaçando a segurança alimentar, a nutrição e a subsistência de comunidades em muitas regiões, incluindo países de baixa renda e comunidades indígenas”, diz o IPCC. Estima-se que o rendimento máximo sustentável de várias populações de peixes selvagens tenha diminuído 4,1% entre 1930 e 2010 devido ao aquecimento dos oceanos, com algumas regiões apresentando perdas de até 35%. Em certas áreas do mundo, o impacto dessa mudança é profundo. “A perda de acesso a fontes marinhas de proteínas afeta a nutrição das comunidades dependentes da subsistência, particularmente no Pacífico Norte, Ártico, África Ocidental e Pequenas Ilhas”, diz. 

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